Ventos de mudança? Biblioteca do Congresso americano terá nova diretoria

Por Sibele de Fausto 

Ontem, quarta-feira 24 de fevereiro de 2016, o presidente dos Estados Unidos Barack Obama fez o anúncio [1] da indicação do próximo dirigente da Biblioteca do Congresso americano (Library of Congress – LoC) para substituir James Billington, que se aposentou em 01 de janeiro deste ano depois de ocupar o cargo por 27 anos. A escolhida é a bibliotecária Carla Diane Hayden.

Caso sua nomeação seja confirmada pelo Congresso bicameral americano, ela será a 14ª diretora a ocupar o importante posto e comandará a mais antiga instituição cultural dos EUA (a LoC foi inaugurada em 1800) e a maior biblioteca do mundo em espaço de armazenagem e número de livros, com mais de 155 milhões de itens, incluindo materiais disponíveis em 470 idiomas [2].

Carla D Hayden2

Quando e se confirmada para o cargo, Carla D. Hayden será a primeira mulher e ainda a primeira representante afro-americana a dirigir a Biblioteca do Congresso em seus mais de 200 anos de existência. Sua indicação aponta para novos ventos para a instituição, pois Hayden é uma bibliotecária engajada – em seu pronunciamento, Obama destacou seu trabalho na Biblioteca Pública de Chicago e sua dedicação à aprendizagem e educação, lembrando ainda a liderança na modernização e foco no público empreendidos em sua gestão frente à Biblioteca Livre Enoch Pratt, em Baltimore. 

O anúncio da indicação foi comemorado na comunidade bibliotecária americana. “O presidente não poderia ter feito uma escolha melhor“, disse Sari Feldman, presidente da Associação Americana de Bibliotecas (American Library Association – ALA) em um comunicado [3]. E com motivo. Carla D. Hayden parece perfeita para o cargo. Bacharel em Biblioteconomia pela Universidade Roosevelt, Mestre e Doutora pela Universidade de Chicago, tem uma vasta experiência em grandes instituições de serviços de informação: até ser indicada para a LoC, era CEO da Biblioteca Livre Enoch Pratt (Enoch Pratt Free Library), em Baltimore, desde 1993. Antes de se mudar para Maryland e ingressar na Biblioteca Pratt, de 1991 a 1993 foi vice-comissária e bibliotecária chefe da Biblioteca Pública de Chicago, onde começou sua carreira em 1973, ocupando diferentes postos. Também atuou 4 anos na docência, como professora assistente de Biblioteconomia e Ciência da Informação na Universidade de Pittsburgh, entre 1987 e 1991, além de ter sido coordenadora dos serviços de biblioteca do Museu da Ciência e Indústria de Chicago (Museum of Science and Industry) de 1982 a 1987. E ainda, presidiu a ALA de 2003 a 2004.

Sob sua gestão, a Biblioteca Pratt se tornou a primeira biblioteca pública de Maryland a fornecer acesso à Internet ao seu público. Com o auxílio de subsídios e angariação de fundos, levou o sistema de biblioteca a fundar o Centro de Formação de Tecnologia (Center for Technology Training), que oferece cursos gratuitos em conhecimentos básicos de informática para os moradores de Baltimore, além de lançar um programa de empréstimo de ebooks, um programa after school oferecendo assistência nas lições de casa e aconselhamento de carreira para os estudantes adolescentes da cidade. A ela credita-se o saneamento das finanças da biblioteca e a expansão dos esforços de divulgação, além do lançamento de novas iniciativas de tecnologia [4]. Por tudo isso, em 1995 Hayden foi a primeira afro-americana a ganhar o prêmio “Bibliotecário do Ano”, concedido pela publicação Library Journal em reconhecimento aos seus esforços para aproximar os serviços da biblioteca ao público.  O presidente Obama ainda lembrou em seu pronunciamento que, durante os distúrbios em Baltimore ocorridos no ano passado, a Dra. Hayden manteve as portas da Biblioteca Pratt “abertas como um farol para a comunidade” [1].

Mas há mais. Carla D. Hayden é reconhecida por sua defesa do acesso aberto à informação. Dan Cohen, fundador e diretor executivo da Biblioteca Pública Digital da América (Digital Public Library of America) comemorou a escolha, dizendo que Carla “é claramente uma advogada na utilização de todos os meios (incluindo os meios digitais) para fornecer acesso democrático à nossa cultura compartilhada” [4].  A revista Ms. Magazine  [5] publicou seu perfil em 2003, quando premiou Carla como “Mulher do Ano”, à época em que ela era presidente da ALA.

Carla D Hayden

Na ocasião, Carla declarou: 

As bibliotecas são uma pedra angular da democracia, onde a informação é livre e disponível igualmente para todos. As pessoas tendem a tomar isso como garantido […] e não percebem o que está em jogo quando isso é colocado em risco.”

Ainda nesse perfil conhece-se a postura da bibliotecária em relação ao Patriot Acta (“Quando as bibliotecas lutam contra o Patriot Act, ou contra [filtros de Internet obrigatórios], nós estamos lutando pelo público.”), e ao acesso aberto (“Servimos os carentes. A maioria das pessoas que utilizam as bibliotecas públicas não têm a oportunidade de comprar livros em uma livraria ou na Amazon”), expondo uma visão da biblioteca como um elemento integrante da democracia: “O que a biblioteca faz é proteger os direitos de todas as pessoas ao pleno e livre acesso às informações e de buscar o conhecimento, sem medo de consequências” [5]. A postura de Carla em oposição ao Patriot Act junta-se às diversas vozes discordantes da sociedade em relação à restrição de direitos constitucionais introduzidos pela Seção 215 do documento, muito criticada por permitir a recolha de metadados telefônicos, ameaçando a garantia do direito de privacidade do cidadão.

Sua indicação é vista como uma resposta direta às severas críticas recebidas por parte da comunidade acadêmica com relação à inércia da Biblioteca do Congresso na gestão e uso de tecnologias, incluindo a falta de iniciativas de digitalização de seu acervo. O diretor anterior, James Billington, aposentado aos 86 anos, foi nomeado pelo então presidente Ronald Reagan e ocupava o cargo desde 1987. Vários relatórios de fiscalização do próprio Governo americano, elaborados por meio do Escritório Governamental de Auditoria (Government Accountability Office) apontam “deficiências generalizadas” na gestão dos recursos de tecnologia e uma “falta de liderança forte e consistente” nessa área, além de reclamações e insatisfação generalizadas dos funcionários [7].  O anúncio de sua aposentadoria no final de 2015 foi recebido com alívio e indisfarçável alegria [8].

Neste sentido, o destaque do presidente Obama à competência de Carla em liderar a modernização tecnológica é evidente: “Sua compreensão do papel fundamental que as tecnologias emergentes desempenham nas bibliotecas será essencial na liderança da Biblioteca do Congresso, para continuar a modernização da sua infraestrutura e promover o acesso aberto e participação plena no mundo digital atual” [1].

Mas o ânimo com sua indicação aparentemente não é unânime. Aqui, lembramos que o Escritório de Direitos Autorais americano (Copyright Office) é subordinado à Biblioteca do Congresso, e enfrenta forte pressão de entidades privadas como a Associação Americana de Filmes (Motion Picture Association of America – MPAA) e a Associação Americana da Indústria Fonográfica (Recording Industry Association of America – RIAA) para ser desligado da biblioteca, alocando-o sob o Escritório de Patentes e Marcas (US Patent and Trademark Office), ou torná-lo uma agência autônoma.  A RIAA manifestou-se a respeito da indicação: “É interessante notar que a Biblioteca do Congresso e o Escritório de Direitos Autorais têm sido mutuamente respeitosos nas áreas de especialização de cada um. Esperamos que o novo dirigente da Biblioteca do Congresso continue a demonstrar respeito pela perícia do Escritório de Direitos Autorais na política de direitos de autor e recomendações ao Congresso ” [9], o que mais parece um aviso velado de demarcação de território. De fato, a nomeação de Carla Hayden à Biblioteca do Congresso, com sua conhecida postura a favor do livre acesso à informação, pode impulsionar uma revisão e a modernização na lei americana de copyright, em benefício de mais acesso público à informação em detrimento da proteção de determinados setores [10].  Talvez essa postura progressista e engajada de Carla seja justamente um empecilho para sua confirmação pelo Congresso bicameral americano.  Há, porém, um precedente a seu favor:  em 2010 quando foi nomeada pelo presidente Obama como membro do Conselho Nacional de Serviços de Museus e Bibliotecas (National Museum and Library Services Board), Carla Hayden foi aprovada pelo Senado.

Vamos acompanhar. Caso Carla Hayden seja mesmo a próxima dirigente da Biblioteca do Congresso, talvez haja mudanças auspiciosas que, com certeza, refletirão em toda a comunidade bibliotecária.

Assista ao vídeo apresentando Carla Hayden como a indicada para a Biblioteca do Congresso pelo presidente Barack Obama:

https://www.facebook.com/potus/videos/457630757760103/.

Notas

a) USA Patriot Act, acrônimo para “Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act” (“Ato de Unir e Fortalecer a América Providenciando Ferramentas Apropriadas e Necessárias para Interceptar e Obstruir o Terrorismo”, em tradução livre). O Patriot Act, como é mais conhecido, é um decreto que foi assinado em 26 de outubro de 2001 pelo então presidente George W. Bush, logo após os atentados de 11 de Setembro – e muito criticado como um instrumento de vigilância e controle dos cidadãos americanos, por, entre outras medidas, permitir acesso maciço a dados de comunicações (Internet e serviços de telecomunicações, como e-mails e ligações telefônicas) por órgãos de segurança e de inteligência dos EUA, sem necessidade de qualquer autorização da Justiça [6].

Nota: Carla D. Hayden foi confirmada no cargo no dia 13 de julho de 2016. (http://www.loc.gov/today/pr/2016/16-110.html?loclr=twloc)

Referências

1. THE WHITE HOUSE. Office of the Press Secretary.  President Obama Announces His Intent to Nominate Carla D. Hayden as Librarian of Congress. Washington, DC, February 24., 2016. Disponível em: <https://www.whitehouse.gov/the-press-office/2016/02/24/>president-obama-announces-his-intent-nominate-carla-d-hayden-librarian>. Acesso em 25 fev. 2016.

2. WIKIPEDIA. Library of Congress. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Library_of_Congress>. Acesso em 25 fev. 2016.

3. AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION. “The President could not have made a better choice”: ALA comments on the pending nomination of Dr. Carla Hayden for Librarian of Congress. ALA News, February 24, 2016. Disponível em: http://www.ala.org/news/press-releases/2016/02/president-could-not-have-made-better-choice-ala-comments-pending-nomination. Acesso em 25 fev. 2016.

4. STRAUMSHEIM, Carl.  The Next Librarian of Congress?. Insider Higher Ed, February 25, 2016. Disponível em: <https://www.insidehighered.com/news/2016/02/25/library-groups-endorse-nominee-librarian-congress#.Vs7WwEuxBbs.twitter>. Acesso em 25 fev. 2016.

5. ORENSTEIN, Catherine. Women of the Year 2003: Carla Diane Hayden. Ms. Magazine,  Winter 2003. Disponível em: <http://www.msmagazine.com/dec03/woty2003_hayden.asp>. Acesso em 25 fev. 2016.

6. WIKIPEDIA. USA PATRIOT Act. Disponível em:  <https://pt.wikipedia.org/wiki/USA_PATRIOT_Act>. Acesso em 25 fev. 2016.

7. SHEAR, Michael D. Library of Congress Chief Retires Under Fire.  The New York Times, June 10, 2015. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2015/06/11/us/library-of-congress-chief-james-hadley-billington-leaving-after-nearly-3-decades.html?hp&action=click&pgtype=Homepage&module=first-column-region&region=top-news&WT.nav=top-news&_r=0>. Acesso em 25 fev. 2016.

8. MCGLONE, Peggy.  Librarian of Congress James Billington to retire in January. The Washington Post, June 10, 2015. Disponível em <https://www.washingtonpost.com/news/arts-and-entertainment/wp/2015/06/10/librarian-of-congress-to-resign-in-january/>. Acesso em 25 fev. 2016.

9. RIAA Reacts To White House Nomination of New Librarian of Congress. Washington, DC: RIAA, February 24, 2016. Disponível em: <http://www.riaa.com/riaa-reacts-to-white-house-nomination-of-new-librarian-of-congress/>. Acesso em 25 fev. 2016.

10. MASNICK, Mike. President Obama Nominates New Librarian of Congress Who Supports Open Access, Fights Against Surveillance. TechDirt, February 24, 2016. Disponível em: <https://www.techdirt.com/articles/20160224/11244433704/president-obama-nominates-new-librarian-congress-who-supports-open-access-fights-against-surveillance.shtml>. Acesso em 26 fev. 2016.

Como citar este post [ABNT/NBR 6023/2002]:

FAUSTO, Sibele de. Ventos de mudança? Biblioteca do Congresso americano terá nova diretoria. 2016. Disponível em: <https://www.aguia.usp.br/?p=4761> Acesso em: DD mês. AAAA.