Uma legislação única e global de direitos autorais para Bibliotecas e Arquivos

SIBiUSP 2016

É tempo de propor um arcabouço legal único de copyright para Bibliotecas e Arquivos. Esta é a visão expressa por Teresa Hackett, Gerente do Programa de Copyright e Bibliotecas da Electronic Information for Libraries (EIFL). na matéria da WIPO Magazine de dezembro de 2015.

O argumento de Hacket baseia-se no “Estudo sobre as limitações dos direitos autorais e exceções para bibliotecas e arquivos” (do original em inglês Study on Copyright Limitations and Exceptions for Libraries and Archives, (Junho de 2015), preparado por Kenneth D. Crews para a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (World Intellectual Property Organization – WIPO). O estudo reúne resultados atualizados e examina a natureza e a diversidade das disposições constantes nas leis de direitos autorais dos 188 países membro da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI). Desse total, 156 países têm, pelo menos, uma exceção legal para biblioteca, enquanto 32 não mencionam nenhuma exceção em seus estatutos de direitos autorais (copyright) nacionais. Infelizmente, este é o caso do Brasil (“The copyright law of Brazil does not include any explicit library provisions.”).

Em seu “Tempo para um quadro único global de copyright para bibliotecas e arquivos” [1], Hackett expressa a urgência do acesso global à informação.

Tradução e adaptação de Elisabeth Dudziak.

As tecnologias digitais têm transformado bibliotecas, arquivos e o acesso à informação. Bibliotecas e Arquivos têm apoiado o trabalho cada vez mais cooperativo e interdisciplinar de cientistas e estudiosos. Em paralelo com as oportunidades de expansão da pesquisa e descoberta de recursos ativados por tecnologias digitais, há uma demanda crescente de acesso a materiais preservados nas bibliotecas e arquivos de todo o mundo. Os gastos globais com conteúdos impressos e digitais são financiados em grande parte pelos contribuintes. Em 2014, esse custo foi estimado em 25,4 bilhões de dólares. Confrontados com um labirinto de leis de direitos autorais diferentes e condições de licenciamento, as bibliotecas e os arquivos estão encontrando cada vez mais dificuldades para responder às necessidades de informação do público a que servem. 

Wipo - British LibraryPreservar nosso patrimônio documental, “nossa memória do mundo”, é caro. Para baixar esses custos, reduzir a duplicação de esforços e maximizar o alcance, bibliotecas e arquivos estão explorando maneiras de usar as tecnologias digitais para criar infra-estruturas compartilhadas de preservação, tanto nacional como internacionalmente. Isto é imperativo dentro da arena digital. Como observado pelo Vice-Presidente da Comissão Européia, Andrus Ansip, responsável pelo Mercado Único Digital, “a natureza sem fronteiras das tecnologias digitais significa que não faz mais sentido que cada país da UE mantenha suas próprias regras para os serviços de telecomunicações, direitos autorais, proteção de dados, ou a gestão do espectro de radiofrequências.”

Recursos globais, leis nacionais

Enquanto as operações de bibliotecas e arquivos se tornam cada vez mais globais, são cerceadas por leis nacionais de direitos autorais. Essas leis regem muitas das principais responsabilidades das Bibliotecas e Arquivos. A preservação do patrimônio cultural e científico, o acesso a recursos de apoio à educação e à pesquisa, empréstimo de livros e outros materiais são alguns exemplos.

Em muitos países, Bibliotecas e Arquivos desfrutam de exceções previstas na legislação de copyright que lhes permitem reproduzir obras protegidas por direitos autorais sob determinadas circunstâncias. Exemplos incluem a pesquisa particular e o estudo, preservação e substituição de materiais, e fornecimento de documentos entre bibliotecas. Mas essas leis podem variar consideravelmente de um país para outro, como demonstrado em um estudo recente da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) sobre direitos de autor – limitações e exceções para bibliotecas e arquivos. O estudo revela que a maioria dos Estados membro da OMPI – 156 dos 188 países pesquisados ​​(83% deles) – têm pelo menos uma exceção legal para biblioteca. Esta é uma boa notícia. Não tão bom, no entanto, é o fato de que 32 países pesquisados (17%) ainda não incluem bibliotecas ou arquivos em suas leis domésticas de direitos de autor.

Quase metade dos Estados membros da OMPI – 90 deles (48%) – não permitem explicitamente bibliotecas de fazer cópias para pesquisa ou estudo. A situação é ainda pior para os arquivos, com dois terços – 126 países ou 67% – não permitindo cópias para fins de pesquisa ou estudo. Além disso, 89 países (47% do total pesquisado) não permitem explicitamente as bibliotecas de fazer cópias para fins de preservação; e 85 deles (45%) não permitem que os arquivos façam tais cópias. É possível que esta situação melhore à medida que as legislações nacionais sejam atualizadas, mas a tendência em relação aos serviços digitais sugere o contrário. Nos países que alteraram as suas leis de direitos autorais nos últimos cinco anos, em mais de um terço deles a cópia digital, em alguns casos, até mesmo para atividades de preservação, é expressamente proibida.

Nos países em que novas proteções anti-evasão (tecnologias destinadas a restringir o acesso não autorizado a obras protegidas) foram introduzidas, enquanto 52 países isentaram as bibliotecas, cerca da metade deles não o fizeram. Na prática, isto significa que, quando uma medida de proteção tecnológica é aplicada aos conteúdos digitais, as bibliotecas não podem contorná-la, até mesmo para fazer uso de uma exceção dentro do direito de autor e, portanto, não podem copiar o trabalho em questão. Com efeito, a lei dá com uma mão e tira com a outra. O estudo da OMPI também revela uma outra camada de complexidade em todos os estatutos, os quais variam significativamente com relação a quem poderá copiar, o que pode ser copiado, a finalidade e o formato de cópias. A Tabela 1 (abaixo) ilustra o labirinto de variações na aplicação das exceções existentes.

WIPO Study Table Translate

Regulação do acesso à informação: direitos de autor ou de licenciamento?

Licenças estabelecendo termos de acesso e uso da informação digital tornaram-se parte da moderna infra-estrutura de informações. Bibliotecas apoiam licenças de acesso livre, e vêem valor em arranjos que permitem usos além dos autorizados pela lei de direitos autorais. Mas restrições de licença podem substituir exceções aos direitos autorais e limitações onde elas existem, e podem impedir o acesso à informação por parte do público e estudiosos. Tais restrições falham com as bibliotecas e também minam a lei de direitos autorais. “Not licensed to fill” é uma frase encontrada todo dia por bibliotecários ao redor do mundo. Isso significa que um pedido de um documento que não está disponível na biblioteca pessoal do usuário é negado devido a restrições de licenciamento.

O fornecimento de documentos entre bibliotecas (interlibrary document supply) é um sistema de gestão de compartilhamento de recursos. Permite que os usuários finais obtenham documentos específicos que não estão disponíveis localmente para eles. O fornecimento de documentos entre bibliotecas é vital para atender às necessidades de informação específicas dos pesquisadores, estudantes e estudiosos. Os pedidos são atendidos de modo não comercial, levando em conta as condições de copyright ou de licenciamento.

O caso da Biblioteca Britânica (British Library – BL)

Em janeiro de 2012, a British Library (BL), uma das maiores bibliotecas de pesquisa do mundo, deixou de prestar o serviço de fornecimento de documentos internacionais conhecido como Overseas Library Privilege Service, que era apoiado por uma exceção de direitos de autor. O objetivo era proteger a British Library de reivindicações de violação [e pagamento de taxa de royalties] de copyright. Esse serviço foi substituído por um arranjo feito com os publishers e denominado International Non-Commercial Document Supply (INCD) – serviço internacional não-comercial de fornecimento de documentos. O novo serviço baseia-se em um acordo de licenciamento que reduziu drasticamente o acesso à informação. Os dados obtidos da British Library, com base na Liberdade de Informação (Information Freedom), mostram que o número de títulos de periódicos disponíveis no âmbito do serviço INCD caiu 93% em relação ao serviço anterior, de 330.700 títulos em 2011 para 23.600 em 2012. Mais títulos “desapareceram” do que estão disponíveis sob licenças não-comerciais, e alguns 28.300 títulos já não estão mais disponíveis, quer incluam taxas comerciais ou não comerciais.

Com suas ricas coleções multilingues, cobrindo uma vasta gama de assuntos, a British Library (BL) é usada frequentemente como a “biblioteca da última chance”. É a biblioteca onde se vai quando um item não pode ser encontrado em qualquer outro lugar. Em 2011, a BL forneceu informações para outras Bibliotecas em 59 países sob o serviço baseado em direitos de autor (copyright). Em 2014, sob o serviço licenciado, o número de países atendidos havia caído para 33. Dados abaixo explicitam a situação e foram obtidos da prórpia British Library (BL) – Non-Commercial Document Supply (INCD).

British Library requests for articles - Wipo article

A redução dos títulos de periódicos disponíveis para usuários não comerciais parece estar ligada ao fato de que a maioria dos títulos agora está apenas disponível  por meio do pagamento de tarifas comerciais. Uma biblioteca disse-me que um artigo que procuravam custou USD 80. Taxas comerciais estão normalmente fora do alcance dos orçamentos das bibliotecas acadêmicas e de pesquisa. “Nós experimentamos o novo serviço de British Library um par de vezes quando ninguém mais na terra tinha o que precisávamos mas, por causa do enorme aumento dos preços, não ousamos sequer olhar mais para o site”, explica a Biblioteca da Universidade de Ciências da Educação da Lituânia.

De maneira igualmente dramática, o número de pedidos para a British Library (BL) em seu primeiro ano de serviço baseado no licenciamento caíu 92%, de 38.100 para 2.884. Considerando que em 2011 a BL teria se antecipado atendendo mais de 100.000 pedidos de informação durante o período 2012-2104, até ao final de 2014 esse número tinha caído para apenas 1.057, representando uma redução ano-a-ano de 97%. Ainda que a BL tenha os documentos, em muitos casos já não é capaz de fornecê-los, considerando o novo acordo de licenciamento. De fato, em 2012, mais pedidos de informações foram recusados ​​devido a restrições de licenciamento (2.942) que foram satisfeitos no âmbito do novo serviço de licenciamento (2.884).

Quando a coleção de uma biblioteca grande como a Biblioteca Britânica é colocada fora do alcance de bibliotecas em outros lugares, a perda para as bibliotecas e as comunidades de pesquisa é significativo. Quando a informação para a ciência é difícil de obter devido a restrições de licenciamento ou direitos autorais, uma mensagem forte de que o copyright é uma barreira à pesquisa e à aprendizagem é enviada, quando na verdade pode ser um poderoso catalizador.

O exemplo da British Library ilustra as consequências negativas associadas à substituição de um serviço de biblioteca baseado em direitos autorais por outro regulado por uma licença.

Como a lei pode se tornar viável para bibliotecários e arquivistas?

Bibliotecas e Arquivos precisam de padrões globais básicos previstos na lei de direitos autorais que não podem ser substituídos por medidas tecnológicas de proteção ou termos de licenciamento. A pesquisa de qualidade exige o acesso a uma ampla gama de materiais de pesquisa e uma infra-estrutura de informação que suporta o acesso fácil aos resultados da pesquisa internacional. Falta de acesso significa oportunidades perdidas e descobertas atrasadas. É por isso que bibliotecas e arquivos estão pedindo aos Estados membros da OMPI no Comité Permanente do Direito de Autor e dos Direitos Conexos um tratado internacional para estabelecer padrões globais básicos que assegurem a igualdade de tratamento dos recursos digitais, para proteger a capacidade das bibliotecas e arquivos de adquirir e emprestar coleções digitais, e salvaguardar nosso patrimônio cultural e científico no ambiente digital.

Países ainda poderão criar disposições de direitos de autor. As licenças ainda terão um papel importante a desempenhar. Mas um novo acordo internacional criaria uma compreensão global comum que protege o acesso à informação como um bem público através de bibliotecas e arquivos, em prol da educação, inovação e desenvolvimento. Levaria em conta a forma como a tecnologia está mudando a maneira como as pessoas procuram informação e as bibliotecas e arquivos respondem a essas necessidades. Ela [legislação única e global de copyright] irá permitir às bibliotecas negociar termos justos para as necessidades públicas e institucionais – com base na lei de direitos autorais – para assegurar a igualdade de acesso a todos.

[1] HACKET, Teresa. “Time for a single global copyright framework for libraries and archives“. WIPO Magazine, Dec. 2015. Disponível em <http://www.wipo.int/wipo_magazine/en/2015/06/article_0002.html> Acesso em: 15 jan. 2016.

Veja também: HACKET, Teresa. Licensed to fill? Disponível em: <http://www.eifl.net/blogs/licensed-fill-why-copyright-law-needs-permit-international-document-delivery> Acesso em: 15 jan. 2015.

Como citar este post [ABNT/NBR 6023/2002]:

HACKET, Teresa. Uma legislação única e global de direitos autorais para Bibliotecas e Arquivos. Tradução e Adaptação de Elisabeth A. Dudziak (artigo original “Time for a single global copyright framework for libraries and archives“. WIPO Magazine, Dec. 2015). Jan. 2016. Disponível em: <https://www.aguia.usp.br/?p=4385> Acesso em: DD mês. AAAA.